Rota da Seda: arqueólogos encontram cidade medieval submersa no Lago Issyk-Kul

Rota da Seda volta ao centro das atenções após uma expedição subaquática internacional confirmar a existência de uma cidade medieval submersa nas águas noroeste do Lago Issyk-Kul, no Quirguistão. Os pesquisadores localizaram vestígios de um cemitério muçulmano, grandes vasos de cerâmica e restos arquitetônicos em tijolo cozido, compondo um conjunto de evidências que apontam para um antigo assentamento ligado às rotas comerciais que uniam a Ásia à Europa.
- Descoberta submersa na Rota da Seda amplia patrimônio de Issyk-Kul
- Quatro sítios revelam cidade medieval soterrada por terremoto
- Necrópole islâmica dos séculos XIII e XIV confirma troca cultural na Rota da Seda
- Cerâmica, khum e indícios de edifícios públicos detalham economia local
- Contexto histórico: Karacânidas, islamização e domínio da Rota da Seda na Ásia Central
- Próximos passos da pesquisa e preservação do patrimônio de Issyk-Kul
Descoberta submersa na Rota da Seda amplia patrimônio de Issyk-Kul
O complexo arqueológico identificado em Toru-Aygyr encontra-se entre um e quatro metros de profundidade, numa área que, no início do século XV, foi coberta pelas águas devido a um forte terremoto. Segundo a avaliação dos especialistas, o assentamento já havia sido abandonado quando o tremor ocorreu, o que explica a ausência de vítimas humanas associadas ao evento tectônico. A submersão preservou estruturas e objetos, criando um laboratório natural para o estudo de sociedades medievais que prosperaram ao longo da Rota da Seda.
Participaram da missão arqueólogos do Instituto de História, Arqueologia e Etnologia da Academia Nacional de Ciências da República Quirguiz, da Sociedade Geográfica Russa e do Instituto de Arqueologia da Academia Russa de Ciências. A operação combinou mergulhos sistemáticos e perfurações subaquáticas, permitindo uma abordagem multidisciplinar que reuniu dados arquitetônicos, funerários e ambientais.
Quatro sítios revelam cidade medieval soterrada por terremoto
A equipe dividiu a investigação em quatro setores estratégicos. No primeiro deles, foram encontrados restos de construções erguidas com tijolos cozidos, provavelmente ligadas à moagem de grãos em farinha ou fubá. As paredes preservam indícios de acabamento externo, sugerindo o caráter público do edifício — possivelmente uma mesquita, um banheiro comunitário ou uma madraça. Amostras de madeira e argamassa coletadas no local seguem para análises dendrocronológicas e de datação absoluta, que devem fornecer a idade precisa do material orgânico associado.
O segundo setor corresponde a uma necrópole muçulmana datada dos séculos XIII e XIV. Num espaço de aproximadamente 300 por 200 metros, os arqueólogos registraram sepultamentos alinhados em direção ao norte, com os rostos voltados para a Caaba, em Meca, reproduzindo o ritual islâmico tradicional. Restos mortais de um homem e de uma mulher foram recuperados para exame antropológico detalhado, etapa que pode revelar informações sobre dieta, saúde e ancestralidade dos habitantes.
No terceiro segmento, situado ao sul do núcleo urbano, surgiram fragmentos de cerâmica medieval e um khum — vaso de armazenamento de grandes dimensões — inteiro, que permanece parcialmente soterrado. A peça deverá ser retirada em escavações futuras. Próximas ao recipiente, três sepulturas chamaram a atenção dos pesquisadores por indicarem um possível cemitério mais antigo que o identificado no setor dois, insinuando uma sequência de uso funerário prolongado.
O quarto e último sítio concentra estruturas arredondadas e retangulares, hoje convertidas em elevações submersas. Perfurações nesse ponto recolheram amostras de paredes de barro e solos soterrados, insumo que permitirá reconstituir as fases de expansão, abandono e colapso do assentamento. Esses registros geológicos podem ainda clarificar a cronologia do terremoto que desencadeou o alagamento.
Necrópole islâmica dos séculos XIII e XIV confirma troca cultural na Rota da Seda
O padrão funerário identificado na necrópole reforça a ideia de que a influência islâmica se solidificou na região a partir do século XIII, período em que a Horda Dourada ganhou proeminência na Ásia Central. Antes dessa fase, o islamismo estava restrito à elite mercantil e governante, que adotava a fé muçulmana para facilitar transações com correligionários. Entre a população nômade, cultos pagãos ou expressões sincréticas permaneceram em uso. Os enterros alinhados e a orientação para a Qibla confirmam que, à época da necrópole, o islamismo já era a religião dominante entre os residentes sedentários.
A presença de cemitérios bem organizados contrasta com a mobilidade característica de grupos nômades, sugerindo que o assentamento submerso possuía estrutura social complexa, com autoridades religiosas e normas coletivas respeitadas. A análise osteológica de sexo, faixa etária e eventuais patologias dos esqueletos deve ampliar o entendimento sobre o modo de vida, oferecendo pistas sobre práticas alimentares, ofícios e redes de parentesco.
Cerâmica, khum e indícios de edifícios públicos detalham economia local
A cerâmica resgatada no terceiro sítio inclui tigelas, jarros e o khum intacto, recipiente que podia armazenar grãos, água ou óleo em grandes quantidades. O fato de um exemplar inteiro ter sido preservado indica que o abandono da cidade ocorreu de forma relativamente ordenada, sem saque extensivo ou destruição deliberada. Ao lado do equipamento de moagem de grãos localizado no primeiro setor, o khum sugere uma economia baseada tanto na agricultura quanto no comércio de produtos alimentícios, condizente com a posição do assentamento ao longo da Rota da Seda.
A descoberta de tijolos cozidos com decoração externa aponta para técnicas construtivas avançadas e relativa prosperidade. Edifícios públicos com adornos indicam investimento em espaços de sociabilidade, ensino ou culto — elementos típicos de centros urbanos que serviam de parada para caravanas. Esses indícios complementam registros históricos chineses que mencionam postos de abastecimento na orla de Issyk-Kul, embora o império não tivesse controle direto sobre a área.
Contexto histórico: Karacânidas, islamização e domínio da Rota da Seda na Ásia Central
Entre os séculos X e XII, a região de Issyk-Kul integrou o Estado Caracânida, dinastia turca que uniu o vale de Fergana ao leste do atual Quirguistão. Nesse intervalo, múltiplas crenças coexistiam, entre elas o tengrianismo, o budismo e o cristianismo nestoriano. A conversão gradual das camadas dirigentes ao islamismo acompanhou o crescimento do comércio, já que juramentos religiosos fomentavam confiança entre mercadores.
A expansão mongol no século XIII, seguida pela influência da Horda Dourada, acelerou a disseminação do islamismo. Grupos nômades manteriam práticas pagãs por mais tempo, mas as cidades, voltadas para o tráfego de seda, especiarias e metais preciosos, tornaram-se polos islâmicos. A cidade submersa de Toru-Aygyr encaixa-se nesse quadro, funcionando como elo entre o planalto chinês e os mercados persas, até ser abandonada e engolida pelo lago após o terremoto do século XV.
Próximos passos da pesquisa e preservação do patrimônio de Issyk-Kul
Com as amostras coletadas, os cientistas planejam aplicar datação absoluta em madeira, argamassa e sedimentos, além de exames isotópicos nos restos humanos. Esses procedimentos deverão respostas sobre a cronologia do assentamento, o impacto do sismo e a procedência dos habitantes. A remoção do khum inteiro, programada para a próxima temporada de campo, permitirá análise estilística e química dos depósitos internos, oferecendo indicativos do que era armazenado.
Ao mesmo tempo, as perfurações no quarto sítio servem de base para modelar a evolução topográfica subaquática, informação essencial para proteger o sítio contra erosão, turismo descontrolado e futuros tremores. A longo prazo, a integração de relatos históricos chineses às evidências arqueológicas pode esclarecer rotas alternativas da Rota da Seda que margeavam Issyk-Kul, contribuindo para a reconstrução de mapas comerciais medievais e para a valorização do patrimônio cultural quirguiz.

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