Máquina de café vira ferramenta oficial para rastrear contaminação em pescado após desastre de óleo no Brasil

Palavra-chave principal: contaminação em pescado
- Um equipamento doméstico no centro de uma resposta científica
- O desastre de 2019 e a necessidade urgente de monitoramento
- Concepção do estudo e colaboração institucional
- Como a cafeteira foi transformada em laboratório
- Etapas de separação e identificação de compostos
- Validação segundo normas nacionais e europeias
- Da solução emergencial ao método avançado de extração dispersiva guiada energizada
- Impacto socioeconômico para comunidades pesqueiras
- Reconhecimento acadêmico e novos rumos da pesquisa
- A persistência do risco ambiental e a importância de protocolos consolidados
Um equipamento doméstico no centro de uma resposta científica
Uma adaptação inusitada de máquinas de café espresso resultou em um método analítico pioneiro que hoje integra a rotina dos Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária no país. O procedimento, desenvolvido a partir do maior derramamento de petróleo já registrado no litoral brasileiro, permite detectar com alta precisão substâncias derivadas de petróleo em amostras de pescado. Em quatro anos de pesquisas, a técnica evoluiu de um recurso emergencial para um protocolo oficial validado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e alinhado às exigências da União Europeia, garantindo rastreabilidade e segurança para consumidores e comunidades pesqueiras.
O desastre de 2019 e a necessidade urgente de monitoramento
Em 30 de agosto de 2019 surgiram as primeiras manchas de óleo cru nas praias da Paraíba, de Sergipe e de Pernambuco. Nas semanas seguintes, o problema se espalhou pelos nove estados do Nordeste, alcançou o Espírito Santo e o Rio de Janeiro e contaminou cerca de 3 000 km de extensão costeira. Ao todo, estima-se que cinco mil toneladas de petróleo, atribuídas ao navio grego Bouboulina, chegaram ao ambiente marinho, comprometendo ecossistemas, turismo e, sobretudo, a cadeia produtiva da pesca artesanal. Diante do risco à saúde pública, tornou-se imprescindível criar um procedimento rápido, confiável e economicamente viável para atestar a qualidade dos alimentos provenientes do mar.
Concepção do estudo e colaboração institucional
A investigação foi conduzida no âmbito de um doutorado em Ciência de Alimentos, em cooperação com o Laboratório Federal de Defesa Agropecuária do Rio Grande do Sul (LFDA-RS) e com o Setor Laboratorial Avançado de Santa Catarina (SLAV-SC). Esses núcleos integram a estrutura analítica do MAPA, responsável por fiscalizar a cadeia produtiva animal. A parceria propiciou acesso a amostras coletadas em diferentes pontos da costa atingida e a instrumentos de espectrometria de massas necessários à confirmação dos resultados. Durante o processo, foram executadas mais de mil análises envolvendo peixe, camarão, lagosta, mexilhão, ostra e polvo, representando um quadro amplo da biodiversidade marinha explorada comercialmente no Brasil.
Como a cafeteira foi transformada em laboratório
A etapa de extração de contaminantes normalmente exige equipamentos caros e de difícil aquisição em situações emergenciais. Para contornar essa limitação, a equipe de pesquisa adaptou a cafeteira espresso de modo a reproduzir a extração por líquido pressurizado. O filamento de café foi substituído por cápsulas preenchidas com tecido muscular do animal, previamente triturado. Sob pressão e temperatura controladas, solventes específicos percorriam a matriz alimentícia, removendo hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) e outros compostos petrogênicos. A semelhança com o processo de preparar um espresso garantiu rapidez e repetibilidade, enquanto o custo reduzido permitiu o processamento de um grande número de amostras.
Etapas de separação e identificação de compostos
Concluída a extração, os solventes contendo os contaminantes eram transferidos para sistemas cromatográficos. Nesses equipamentos, as moléculas se separavam conforme afinidade química e polaridade. Em seguida, a fração eluída entrava em um espectrômetro de massas, onde era ionizada e fragmentada. Cada íon gerado apresentava relação massa-carga característica que funcionava como impressão digital, possibilitando a identificação inequívoca dos HPAs e de possíveis derivados. O conjunto extração-separação-detecção gerou um protocolo sensível o bastante para quantificar níveis traço, condição indispensável para atender aos limites internacionais de segurança alimentar.
Validação segundo normas nacionais e europeias
Para que um método seja oficialmente aceito, precisa demonstrar exatidão, precisão, seletividade e robustez. A técnica com a cafeteira passou por estudos de recuperação, linearidade e repetibilidade, obedecendo aos critérios do MAPA e às diretrizes definidas pela União Europeia para o controle de resíduos em alimentos de origem animal. Os resultados confirmaram desempenho equivalente ao de sistemas de alto custo, habilitando o uso operacional e tornando-a o primeiro protocolo brasileiro direcionado a contaminantes petrogênicos em pescado. Esse reconhecimento oficial foi decisivo para a avaliação de riscos à saúde e para restabelecer a comercialização de frutos do mar provenientes das áreas afetadas.
Da solução emergencial ao método avançado de extração dispersiva guiada energizada
Com o aumento do número de amostras requisitadas pelas investigações forenses e pela fiscalização sanitária, surgiu a necessidade de aprimorar ainda mais a produtividade. A equipe, então, validou uma abordagem combinada denominada extração dispersiva guiada energizada. O procedimento integra, em um único passo, a extração por líquido pressurizado e a extração em fase sólida dispersiva, reduzindo o tempo de preparo e minimizando a manipulação manual. Graças à automação e ao menor consumo de solventes, o novo método foi adotado como rotina nos Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária, substituindo a versão baseada na cafeteira para grandes séries analíticas, mas mantendo-a como alternativa de contingência em localidades de infraestrutura limitada.
Impacto socioeconômico para comunidades pesqueiras
Pescadores artesanais que dependem da venda diária de pescado foram um dos grupos mais vulneráveis ao desastre de 2019. A ausência de laudos confiáveis poderia inviabilizar o comércio local e agravar a insegurança alimentar. O protocolo com a cafeteira viabilizou diagnósticos rápidos, oferecendo transparência sobre a qualidade sanitária dos produtos e sustentando a continuidade do consumo. Esse suporte científico foi apontado como elemento central para restaurar a confiança dos mercados atacadista e varejista, evitando perdas econômicas significativas para centenas de famílias cuja renda está diretamente ligada à pesca de subsistência.
Reconhecimento acadêmico e novos rumos da pesquisa
A tese que descreveu o desenvolvimento, a validação e a aplicação prática do método recebeu o Prêmio CAPES de Tese 2024 na área de Ciência de Alimentos. O trabalho, intitulado “Derramamento de petróleo no litoral brasileiro: desenvolvimento de métodos analíticos para controle de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos e monitoramento de pescado baseado em risco”, consolidou-se como referência nacional em monitoramento pós-derrames. Na etapa de pós-doutorado, a autora do estudo direciona esforços para avaliar a presença de nano e microplásticos em organismos marinhos, tema emergente que ameaça repetir, em escala microscópica, os desafios trazidos pelo petróleo para a segurança dos alimentos.
A persistência do risco ambiental e a importância de protocolos consolidados
O aparecimento de novas manchas de óleo em 2022 indica que o litoral brasileiro permanece suscetível a eventos de poluição por hidrocarbonetos. A existência de métodos validados e institucionalizados oferece resposta ágil para futuros incidentes, reduzindo a exposição do consumidor a contaminantes tóxicos e permitindo que as autoridades sanitárias tomem decisões baseadas em evidências. Além de aplicação direta em emergências, o protocolo contribui para vigilância contínua em projetos de aquicultura, pontos de desembarque e unidades de processamento, reforçando a confiabilidade da cadeia produtiva de pescado no mercado interno e em exportações.
Com a transformação de máquinas de café em plataformas analíticas, a ciência brasileira demonstrou criatividade e eficiência ao enfrentar um dos mais graves desastres ambientais do país. O conhecimento gerado transcende o episódio de 2019 e permanece como ferramenta estratégica para proteger a saúde pública, salvaguardar ecossistemas marinhos e garantir a sustentabilidade de uma atividade econômica vital para milhares de brasileiros.

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