DNA revela que gatos chegaram à Europa somente na era romana, refazendo 6 mil anos de suposições

Palavras-chave principais: gatos domésticos, Europa, DNA nuclear, Império Romano, rotas do Mediterrâneo
- Entenda o achado principal
- Quem conduziu o estudo e onde os vestígios foram recolhidos
- Como a análise genética foi executada
- O que foi observado nos vestígios pré-históricos europeus
- Quando e por que a chegada efetiva ocorreu
- Rotas do Mediterrâneo: o vetor da dispersão
- As duas ondas identificadas pelo estudo
- Relação norte-africana: múltiplos berços de domesticação
- Por que hipóteses anteriores foram refutadas
- Implicações para a compreensão da domesticação animal
- Conclusões evidenciadas pelo DNA
Entenda o achado principal
Uma investigação internacional baseada em DNA nuclear de felinos modernos e antigos concluiu que os primeiros gatos domésticos só se estabeleceram na Europa aproximadamente no século I d.C. A descoberta desmonta hipóteses mantidas por décadas, segundo as quais a domesticação felina teria acompanhado agricultores do Oriente Próximo entre seis e sete milênios atrás.
Quem conduziu o estudo e onde os vestígios foram recolhidos
A pesquisa foi conduzida por um grupo liderado pelo paleogeneticista Claudio Ottoni, da Universidade de Roma Tor Vergata, com colaboração da arqueozoologista Bea De Cupere, do Royal Belgian Institute of Natural Sciences. A equipe examinou restos provenientes de 97 sítios arqueológicos distribuídos por áreas costeiras, ilhas mediterrâneas, antigos acampamentos militares e assentamentos urbanos. Entre os materiais avaliados encontravam-se crânios e ossos como os desenterrados no sítio arqueológico Parking 58, em Bruxelas.
Como a análise genética foi executada
Ao contrário de estudos anteriores baseados no DNA mitocondrial — marcador útil, porém limitado para rastrear linhagens maternas — o grupo empregou DNA nuclear, que registra informações herdadas de ambos os genitores. Essa abordagem ampliou a precisão na distinção entre gatos totalmente selvagens, híbridos e genuinamente domésticos. O exame detalhado permitiu separar claramente três categorias: o Felis silvestris silvestris (gato-selvagem europeu), populações norte-africanas ancestrais e os felinos que já apresentavam sinais inequívocos de domesticação.
O que foi observado nos vestígios pré-históricos europeus
Todas as amostras anteriores à era romana, encontradas em solo europeu, pertenciam ao gato-selvagem local ou a híbridos resultantes do contato ocasional com gatos norte-africanos. Nenhuma delas exibia o perfil genético dos gatos de companhia que hoje habitam casas e cidades. Assim, os felinos identificados em contextos neolíticos não eram ancestrais diretos dos animais domésticos atuais.
Quando e por que a chegada efetiva ocorreu
Os primeiros genomas compatíveis com gatos domésticos modernos só surgem em registros associados ao período imperial de Roma, por volta de 2 000 anos atrás. Esse período coincide com a expansão marítima e terrestre do Império Romano, que interligava portos, fortalezas, entrepostos comerciais e rotas de abastecimento por todo o Mediterrâneo. A necessidade de controlar infestações de roedores nos navios graneleiros, carregados de trigo e outros mantimentos, forneceu um incentivo prático para transportar gatos além de seus habitats originais.
Rotas do Mediterrâneo: o vetor da dispersão
Navios que partiam do norte da África em direção a ilhas como Sardenha, Sicília e à costa continental europeia tornaram-se corredores eficientes de disseminação. As embarcações funcionavam como ecossistemas flutuantes onde grãos atraíam ratos, e ratos atraíam gatos. O Mediterrâneo, já intensamente navegável por causa do comércio e das campanhas militares, agiu como via rápida para a expansão felina.
As duas ondas identificadas pelo estudo
Primeira onda — 2 200 anos atrás
A análise genética apontou uma chegada inicial de gatos selvagens originários do noroeste da África à ilha da Sardenha. Esses felinos estabeleceram uma população insular que persiste até hoje como forma selvagem. Contudo, seus descendentes não participam da ascendência dos gatos domésticos contemporâneos.
Segunda onda — 2 000 anos atrás
Uma linhagem distinta, já domesticada, foi introduzida na Europa durante o auge do Império Romano. Essa segunda migração é a responsável pela base genética da população doméstica atual no continente. Evidências recuperadas em antigos acampamentos militares romanos indicam que o exército transportava gatos para fortes de fronteira, portos e centros logísticos, auxiliando na difusão terrestre após o desembarque.
Relação norte-africana: múltiplos berços de domesticação
A investigação sugere a existência de mais de um núcleo de domesticação no norte da África. Fatores como ritos religiosos, atividades comerciais e necessidades de controle de pragas convergiram para tornar a região um polo de interação entre humanos e felinos. O Egito faraônico, onde gatos eram venerados, mumificados e associados à deusa Bastet, figura como componente simbólico fundamental dessa história, embora não seja o único cenário de domesticação.
Por que hipóteses anteriores foram refutadas
Modelos antigos baseavam-se no pressuposto de que gatos teriam acompanhado a migração de agricultores neolíticos do Crescente Fértil para a Europa, transportados nos primeiros navios ou caravanas. Entretanto, o DNA nuclear mostra ausência completa de linhagens domésticas nos vestígios desse período. Isso indica que a convivência utilitária e simbólica entre humanos e gatos, voltada ao controle de roedores e à devoção religiosa, ainda não produzira o fluxo populacional necessário para firmar o felino como espécie doméstica no continente europeu.
Implicações para a compreensão da domesticação animal
Os resultados apontam que a domesticação de gatos não aconteceu em um evento único, mas em processos paralelos e sobrepostos. Além disso, revelam que fatores militares, comerciais e religiosos podem rivalizar com a agricultura como motores de dispersão de espécies domesticadas. O caso dos gatos ilustra como rotas marítimas e demandas logísticas do Império Romano foram decisivas para a integração de um animal exótico ao cotidiano europeu.
Conclusões evidenciadas pelo DNA
A reconstrução genômica demonstra, com base factual, que:
• Gatos domésticos atuais na Europa descendem de felinos norte-africanos introduzidos apenas há cerca de dois milênios.
• Evidências neolíticas europeias referem-se a gatos selvagens, não a antecessores dos gatos de companhia.
• Houve duas migrações distintas, sendo a segunda — ligada ao Império Romano — a responsável pela linhagem doméstica moderna.
• Rotas marítimas e campamentos militares foram canais fundamentais de dispersão.
• Múltiplos centros de domesticação no norte da África, associados a práticas religiosas e necessidades práticas, contribuíram para o sucesso global da espécie.
Esses pontos refazem a narrativa aceita até agora e realçam a importância da análise genética aprofundada para revisar noções históricas consolidadas.

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