Vida estranha nas profundezas do Ártico: ecossistema de hidratos de gás mais profundo intriga cientistas

Vida estranha foi identificada a cerca de 3,5 quilômetros de profundidade no Mar da Groenlândia, revelando o ambiente de infiltração fria de hidratos de gás mais profundo já documentado e expondo um novo mosaico de biodiversidade, processos químicos e desafios de conservação.
- Onde a vida estranha prospera a quase quatro mil metros
- Como a vida estranha sobrevive sem luz solar
- Tecnologia empregada para mapear o recanto ártico
- Relação entre fontes hidrotermais e a vida estranha recém-identificada
- Implicações climáticas e econômicas da descoberta
- Por que a vida estranha amplia fronteiras da pesquisa
- Próximos passos na investigação do Ártico profundo
Onde a vida estranha prospera a quase quatro mil metros
O ponto focal da descoberta localiza-se na Depressão de Molloy, uma área do Oceano Ártico inserida no Estreito de Fram, passagem marítima entre a Groenlândia e o arquipélago de Svalbard. A expedição Ocean Census Arctic Deep EXTREME24, realizada em 2024, enviou um veículo operado remotamente (ROV) até a região e registrou, por meio de imagens de alta definição, um conjunto de montes repletos de hidratos de gás batizado de montes de hidratos de gás Freya. Nesse cenário sem luz solar direta, o ROV observou colônias densas de vermes tubulares frenulados, caracóis, crustáceos e microrganismos especializados em aproveitar os hidrocarbonetos que escapam do subsolo marinho.
A profundidade de 3,5 quilômetros estabelece um novo recorde: o local está mais de 1,5 quilômetro abaixo de qualquer outra infiltração fria de hidratos de gás registrada anteriormente. Até a missão de 2024, tais ambientes eram conhecidos apenas em zonas menos profundas, onde a pressão e a temperatura já permitiam a formação de hidratos, mas em níveis ainda acessíveis a operações tradicionais de pesquisa.
Como a vida estranha sobrevive sem luz solar
Ao contrário de ecossistemas dependentes da fotossíntese, a vida estranha catalogada nos montes Freya baseia-se em quimiossíntese. Nessa estratégia, microrganismos convertem energia química – especialmente de metano e petróleo bruto que vazam do leito oceânico – em compostos orgânicos utilizados como alimento. Os hidratos de gás atuam como reservatórios sólidos dessas substâncias; quando a estrutura cristalina se rompe, hidrocarbonetos escapam em plumas que chegam a milhares de metros de altura dentro da coluna d’água. Uma dessas plumas, detectada antes da expedição, atingiu 3,2 quilômetros, sendo a mais elevada já observada nos oceanos.
Vermes tubulares, caracóis e crustáceos formam uma cadeia alimentar que se inicia nesses microrganismos quimiossintéticos. Os vermes colonizam as fissuras dos montes, enquanto crustáceos aproveitam o material orgânico produzido. Apesar da pressão extrema e das temperaturas próximas ao congelamento, a densidade biológica transforma os montes em verdadeiros oásis, contrastando com a relativa escassez de organismos no entorno abissal ártico.
Tecnologia empregada para mapear o recanto ártico
A confirmar a ocorrência desses oásis, a equipe de pesquisa recorreu a um ROV equipado com câmeras, sensores de composição química e braços mecânicos capazes de coletar amostras de rochas, fluidos e organismos. O veículo foi lançado a partir de um navio-plataforma e operado por controle remoto, permitindo manobras de precisão em um ambiente onde a pressão supera 350 vezes a atmosférica ao nível do mar.
Antes do mergulho, dados de sonar multifeixe e perfis de coluna de água indicaram regiões de emissões gasosas intensas. Uma vez in loco, o ROV registrou imagens de montes parcialmente colapsados, evidenciando a natureza dinâmica dos hidratos. O material coletado agora passa por análises genéticas e geoquímicas para detalhar as espécies presentes, a composição dos hidratos e a taxa de liberação de metano.
Relação entre fontes hidrotermais e a vida estranha recém-identificada
Além dos montes Freya, a mesma expedição investigou fontes hidrotermais em áreas adjacentes no Estreito de Fram. Essas fontes resultam da expulsão de água superaquecida e mineralizada por fissuras no leito oceânico. A proximidade geográfica entre fontes hidrotermais e infiltrações frias de hidratos no Ártico profundo é incomum e revelou que seus habitantes compartilham ligações evolutivas.
A análise preliminar sugere que várias espécies encontradas nos dois ambientes pertencem a linhagens aparentadas, indicando conectividade ecológica. Esse vínculo é particularmente relevante porque o Ártico profundo apresenta menor diversidade quando comparado a outras bacias oceânicas — consequência de um episódio de cobertura por camada de gelo ocorrido há cerca de 20 mil anos, que restringiu a recolonização. Os oásis quimiossintéticos parecem ter funcionado como refúgios, permitindo a sobrevivência e a dispersão de organismos adaptados a condições extremas.
Implicações climáticas e econômicas da descoberta
Os hidratos de gás funcionam como grandes depósitos de metano, gás de efeito estufa com potencial de aquecimento global superior ao do dióxido de carbono em horizontes de curto prazo. Embora os montes Freya estejam distantes o suficiente da superfície para não sofrer diretamente com o aumento da temperatura dos oceanos, seu estudo fornece dados cruciais sobre a estabilidade desses reservatórios em diferentes contextos de pressão e temperatura.
Do ponto de vista econômico, formações ricas em metano e petróleo bruto podem atrair interesses de perfuração offshore ou mineração em águas profundas. No Ártico, esse debate é particularmente sensível: planos de exploração já foram suspensos pelo parlamento norueguês, mas podem retornar à pauta. A nova evidência de que infiltrações frias sustentam comunidades semelhantes às das fontes hidrotermais fortalece o argumento por proteção ambiental equiparada, evitando impactos sobre uma teia de vida única.
Por que a vida estranha amplia fronteiras da pesquisa
Organismos isolados em ambientes extremos frequentemente produzem biomoléculas inéditas, com potencial farmacológico e biotecnológico. A descoberta de um ecossistema tão profundo e ainda inexplorado reforça a necessidade de investimentos em campanhas de mapeamento, dado que menos de 1 % do fundo oceânico foi examinado detalhadamente. Cada nova expedição tende a revelar espécies desconhecidas, propriedades químicas diferenciadas e processos ecológicos que podem redesenhar o entendimento sobre ciclos globais de carbono e nutrientes.
Além de preencher lacunas em modelos climáticos, o estudo de infiltrações frias ajuda a calibrar estimativas sobre o volume total de metano armazenado em hidratos. Esse conhecimento é vital para prever cenários de liberação acentuada de gases caso ocorra aquecimento prolongado das camadas superiores do mar.
Próximos passos na investigação do Ártico profundo
Os dados recolhidos pelo ROV durante a missão Ocean Census Arctic Deep EXTREME24 atualmente passam por triagem em laboratórios na Noruega e na Itália. A equipe planeja retornar à Depressão de Molloy para comparar leituras sazonais de fluxo de metano, avaliar a estabilidade dos montes e descrever formalmente as novas espécies observadas.

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