Ritual de crânios de dois mil anos na Catalunha revela intenções múltiplas, indicam arqueólogos

Arqueólogos reavaliaram o significado de crânios humanos expostos em antigos povoados da atual Catalunha e, com base em novos exames laboratoriais, concluíram que as cabeças exibidas há cerca de dois mil anos podiam servir tanto como troféus de guerra quanto como objetos de veneração comunitária.
- Quem conduziu a investigação
- Quando e onde o ritual ocorreu
- Como os pesquisadores investigaram a origem das cabeças
- Por que as cabeças eram expostas
- Contexto de crescente violência regional
- Resultados obtidos em Puig Castellar
- Descobertas em Ullastret
- Paralelo com o massacre de La Hoya
- Marcas físicas e tratamentos pós-mortem
- Repercussão entre especialistas
- Limitações e próximos passos
- Importância do estudo
Quem conduziu a investigação
O trabalho foi liderado por Rubén de la Fuente-Seoane, da Universidade Autônoma de Barcelona, e publicado na revista Journal of Archaeological Science. A equipe analisou sete crânios provenientes de dois assentamentos ibéricos: Puig Castellar e Ullastret. Ambos os sítios, fundados por volta do século VI a.C., forneceram material suficiente para comparar origens, locais de exposição e possíveis significados do ritual.
Quando e onde o ritual ocorreu
Os crânios pertencem à Idade do Ferro na Península Ibérica, período compreendido aproximadamente entre 800 a.C. e 218 a.C. As práticas foram identificadas em duas localidades específicas da atual Catalunha. Puig Castellar ficava sobre uma colina com vista para o litoral, enquanto Ullastret era a capital de um território conhecido como Indiketes. Os dois povoados foram abandonados entre o fim do século III e o início do II a.C., provavelmente em consequência da chegada das tropas romanas à região.
Como os pesquisadores investigaram a origem das cabeças
Para determinar se as vítimas eram habitantes locais ou pessoas capturadas em confrontos, a equipe utilizou a análise de isótopos de estrôncio e oxigênio no esmalte dentário. O estrôncio é absorvido na infância a partir da água e do solo e registra a assinatura geológica do local onde o indivíduo cresceu. O oxigênio, por sua vez, reflete condições climáticas associadas à altitude e à proximidade do mar. A combinação dos dois marcadores possibilita reconstruir a trajetória geográfica dos portadores das cabeças, sem necessidade de dados históricos adicionais.
Por que as cabeças eram expostas
Durante décadas, havia duas hipóteses principais para explicar a presença de crânios nas muralhas, entradas ou mesmo dentro das casas ibéricas: culto a ancestrais ou uso como troféu para intimidar inimigos. O novo estudo propõe que as duas práticas podiam ocorrer simultaneamente, dependendo da identidade dos mortos e do local exato onde a cabeça era posicionada. Essa interpretação sugere uma dinâmica social mais complexa do que a dicotomia originalmente proposta.
Contexto de crescente violência regional
Achados arqueológicos indicam que o período em análise foi marcado por instabilidade político-militar. Armas enterradas junto a indivíduos e lesões fatais — incluindo decapitações — aparecem com frequência nos cemitérios datados entre o século VI e o III a.C. Nesse mesmo intervalo, povoados foram incendiados e abandonados de forma súbita, reforçando a interpretação de conflitos armados recorrentes. A violência culminou com a expansão romana, que transformou a paisagem política e levou ao declínio de várias comunidades locais.
Resultados obtidos em Puig Castellar
Dos quatro crânios analisados nesse sítio, três pertenciam a indivíduos considerados estrangeiros, sendo um adolescente e dois adultos com menos de 35 anos. O quarto crânio, de idade indeterminada, correspondeu a um morador local. Todos foram encontrados próximos às muralhas e à entrada principal, locais de alta visibilidade para habitantes e visitantes. A presença majoritária de não locais nesse conjunto apoia a interpretação de exibição como demonstração de força militar, destinada a inibir adversários externos ou dissuadir rebeliões internas.
Descobertas em Ullastret
Em Ullastret, três crânios atravessados por pregos de ferro foram submetidos à mesma análise. Dois deles pertenciam a adultos locais com menos de 40 anos e estavam dentro de residências, sugerindo uso em rituais de homenagem a membros destacados da comunidade. O terceiro crânio era de origem estrangeira e foi encontrado em uma vala fora das muralhas, área menos visível, mas ainda simbólica. Esse posicionamento indica provável status de troféu de combate, reforçando a coexistência de práticas voltadas à veneração interna e à intimidação externa.
Paralelo com o massacre de La Hoya
A pesquisa também menciona o caso de La Hoya, povoado situado no vale do rio Ebro, destruído entre 350 a.C. e 200 a.C. Escavações realizadas em 2020 identificaram corpos de homens, mulheres e crianças onde caíram, exibindo queimaduras, decapitações e desmembramentos. Objetos de valor permaneceram no local, o que aponta para um ataque voltado à aniquilação política e não ao saque. Esse episódio fornece pano de fundo para entender a atmosfera de violência sistêmica que motivava a coleta de cabeças como lembrete permanente da derrota inimiga.
Marcas físicas e tratamentos pós-mortem
Algumas cabeças de Ullastret traziam sinais de perfurações por pregos de ferro, possivelmente para fixação em madeira ou alvenaria. Em Puig Castellar, houve registro de cortes no queixo de um dos indivíduos, sugerindo decapitação deliberada. Textos clássicos mencionam o uso de óleo de cedro para preservar troféus humanos; no entanto, um estudo realizado em 2016 não detectou vestígios da substância nos crânios examinados. Esses contrastes apontam para diversidade nas técnicas de processamento e exibição.
Repercussão entre especialistas
O diretor do Museu de História da Catalunha destacou surpresa diante da hipótese de que culto aos antepassados e exibição de troféus pudessem ocorrer simultaneamente no mesmo território. Para ele, as evidências sugerem que diferentes tribos interpretavam a prática de acordo com seu contexto sociocultural, embora todas compartilhassem o objetivo final de projetar poder. Tal pluralidade reforça a necessidade de estudos adicionais para mapear as variações regionais e temporais das cerimônias envolvendo partes humanas.
Limitações e próximos passos
Os autores reconhecem que a amostra de sete crânios não abrange toda a complexidade dos assentamentos ibéricos. Novas análises químicas e a expansão da coleta de material ósseo podem aprimorar a distinção entre indivíduos locais e estrangeiros. Além disso, correlacionar dados isotópicos com informações arqueobotânicas, arquitetônicas e funerárias pode revelar se determinados clãs monopolizavam a prática ou se ela era difundida entre diversos grupos.
Importância do estudo
A identificação simultânea de homenagem interna e intimidação externa amplia a compreensão de como sociedades da Idade do Ferro construíam autoridade. Ao mesmo tempo, o uso de técnicas laboratoriais para rastrear a trajetória dos indivíduos demonstra o potencial da ciência para elucidar rituais aparentemente enigmáticos. Mesmo com questões em aberto, o trabalho estabelece um marco para pesquisas futuras sobre violência, identidade e simbolismo na Península Ibérica pré-romana.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.

Conteúdo Relacionado