Parasita social induz formigas operárias a assassinar a própria rainha

Um novo estudo sobre parasitismo social em formigas descreve um mecanismo inusitado e meticuloso que leva operárias a matarem a rainha legítima da colônia. Pesquisadores identificaram que fêmeas invasoras da espécie Lasius orientalis conseguem, por meio de disfarce químico e liberação de fluido abdominal, provocar a execução da matriarca de colônias de Lasius flavus. O fenômeno, observado inicialmente em vídeo de um entusiasta japonês e posteriormente validado em laboratório, revela uma estratégia de dominação que dispensa o confronto direto e explora a própria hierarquia social dos insetos.
- O que é o parasitismo social entre insetos
- O vídeo amador que acendeu a investigação
- Metodologia e resultados do estudo acadêmico
- Passo a passo da tomada de poder
- Por que evitar o confronto direto
- Caso paralelo: Lasius umbratus e Lasius japonicus
- Aspectos químicos do golpe
- Complexidade social e importância científica
No universo das formigas, vespas e abelhas, o termo parasitismo social descreve situações em que um indivíduo ou uma espécie inteira se aproveita da organização de outra colônia para garantir recursos, abrigo ou mão de obra. O comportamento pode incluir o sequestro de ninfas, a delegação de cuidados parentais a hospedeiros ou, como mostra o novo trabalho, a infiltração de uma rainha que usurpa o trono alheio. A tática confere vantagens evolutivas porque poupa energia na construção de ninho, na criação de operárias e na defesa inicial do formigueiro.
Existem vertentes variadas dessa prática. Alguns parasitas sequestram filhotes — chamados ninfas — para ampliar a força de trabalho de sua própria colônia. Outros depositam ovos em ninhos estrangeiros e deixam que as operárias hospedeiras assumam o cuidado das crias invasoras. Na modalidade relatada agora, a estratégia é ainda mais refinada: a rainha parasita obtém perfumes químicos do ambiente alvo, torna-se “invisível” ao olfato das operárias e manipula o grupo a cometer matricídio.
O vídeo amador que acendeu a investigação
O ponto de partida do estudo foi um registro caseiro feito pelo japonês Taku Shimada, entusiasta declarado de formigas. Em publicação de blog, Shimada relatou ter encontrado uma rainha recém-acasalada de Lasius orientalis. Motivado pela curiosidade, ele colocou a fêmea no interior de uma colônia de Lasius flavus e gravou as interações. Para sua surpresa, em vez de expulsar a intrusa, as operárias atacaram e mataram a própria rainha biológica.
A cena improvável chegou ao conhecimento de Keizo Takasuka e Yuji Tanaka, da Universidade de Kyushu. Intrigados, os dois pesquisadores decidiram conduzir experimentos controlados para verificar se o comportamento era casual ou parte de uma estratégia consistente. Os resultados, publicados na revista Current Biology, confirmaram a segunda hipótese.
Metodologia e resultados do estudo acadêmico
Takasuka e Tanaka organizaram formigueiros experimentais contendo colônias de Lasius flavus e introduziram rainhas de Lasius orientalis. Também analisaram registros semelhantes envolvendo a dupla Lasius umbratus e Lasius japonicus, já descrita na literatura como praticante de parasitismo social. Os cientistas observaram que, após breves períodos de convivência, as operárias hospedeiras passavam a enxergar a matriarca nativa como inimiga.
O estudo descreve ainda que a rainha invasora acumula substâncias odoríferas da colônia-alvo, estratégia que reduz a agressividade imediata contra si. Assim que se sente aceita, ela parte para o ataque químico: projeta sobre a rainha residente um jato de fluido abdominal de odor forte, muito provavelmente contendo ácido fórmico. Esse borrifo neutraliza ou mascara os feromônios característicos da líder original.
Passo a passo da tomada de poder
A sequência de eventos que culmina no assassinato ocorre em quatro etapas principais:
1. Infiltração: a invasora entra no formigueiro e permanece imóvel ou realiza movimentos discretos até que seu corpo absorva os odores do ninho.
2. Camuflagem química: com o tempo, os hidrocarbonetos cuticulares da colônia aderem ao exoesqueleto da intrusa, reduzindo a chance de reconhecimento como estrangeira.
3. Ataque odorífero: já próxima da rainha legítima, a invasora libera o fluido abdominal. O odor fétido confunde as operárias, que deixam de identificar a própria mãe.
4. Execução coletiva: as operárias, agora incapazes de reconhecer o perfil químico da matriarca, voltam-se contra ela, mordem, subjugam e matam a líder. A parasita recua durante a violência, evitando ferimentos.
Consolidado o golpe, a nova rainha assume o posto. Ela passa a colocar seus próprios ovos e, com o passar do tempo, substitui geneticamente a população do formigueiro. As operárias remanescentes trabalham até morrer, sustentando a descendência da usurpadora.
Por que evitar o confronto direto
A literatura menciona que invasoras podem tentar derrubar rainhas em brigas corpo a corpo. No entanto, como destacou o biólogo evolucionista Christian Rabeling ao comentar o estudo, o método físico é arriscado. O duelo pode envolver amputação de membros, decapitação ou mordeduras letais na garganta, exigindo força considerável e deixando a agressora vulnerável ao contra-ataque de operárias protetoras. Ao manipular o comportamento das trabalhadoras, a parasita diminui danos próprios e remove o obstáculo dominante sem gastar energia extra.
Caso paralelo: Lasius umbratus e Lasius japonicus
Os autores observaram que o mesmo padrão de usurpação ocorre em colônias envolvendo Lasius umbratus e Lasius japonicus. A similaridade sugere que o método baseado em fluido abdominal e camuflagem química pode ter evoluído mais de uma vez dentro do gênero Lasius ou, alternativamente, ter sido conservado entre linhagens próximas. A descoberta amplia o entendimento sobre a diversidade de estratégias de parasitismo social entre formigas.
Aspectos químicos do golpe
O componente central da manipulação é o fluido abdominal expelido pela rainha invasora. Embora o artigo cite ácido fórmico como provável ingrediente, a análise detalhada da composição não foi divulgada. Independentemente da mistura exata, o efeito prático é suprimir ou mascarar os feromônios da rainha hospedeira. Sem esse “cartão de identidade” odorífero, as operárias deixam de reconhecer a mãe, interpretam-na como intrusa e promovem a eliminação.
O caso evidencia a sofisticação das interações sociais em insetos, mesmo em sistemas considerados rigidamente hierárquicos. A existência de estratégias que exploram o instinto de proteção das operárias contra a própria progenitora reforça a ideia de que, dentro de limites químicos, a identidade de um indivíduo pode ser reconfigurada. Para a biologia evolutiva, cada novo mecanismo desvendado amplia a compreensão sobre conflitos internos de colônias, pressões seletivas e adaptação comportamental.
Com cerca de 14 mil espécies de formigas descritas no mundo, descobrir como algumas exploram as regras sociais de outras amplia também a discussão sobre coevolução, defesa química e reconhecimento intraespecífico. O trabalho de Takasuka e Tanaka, motivado por um registro amador, demonstra que descobertas relevantes podem surgir da observação atenta do comportamento animal, mesmo em ambientes aparentemente comuns.
Enquanto outras formas de parasitismo social continuarão a ser investigadas, a técnica do fluido mascarador de feromônios estabelece um novo capítulo na lista de estratégias usadas por formigas para expandir território, economizar recursos e perpetuar suas próprias linhagens dentro de formigueiros alheios.

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