Neurotecnologia cresce e abre batalha pela protecção dos pensamentos
A integração entre cérebro e máquina deixou de ser matéria de ficção científica para se tornar uma indústria em rápida expansão. A chamada neurotecnologia reúne métodos que vão da ressonância magnética tradicional a interfaces directas entre neurónios e computadores, permitindo visualizar, reparar ou mesmo potenciar funções cerebrais. Embora o impacto médico seja significativo, a recolha de dados neurais levanta dúvidas sobre privacidade, livre-arbítrio e uso comercial dessas informações.
Dados do cérebro já interessam ao marketing
Sinais eléctricos extraídos do cérebro revelam estados cognitivos, emocionais e até memórias. Empresas que consigam aceder a esse fluxo de informação ganham uma ferramenta poderosa para analisar preferências, antever decisões e moldar comportamentos de consumo. Para Marcello Ienca, especialista em neuroética da Universidade Técnica de Munique, “o cérebro é o activo mais valioso” num ecossistema dominado por modelos de negócio baseados em dados. Redes sociais e retalhistas online procuram padrões mentais que permitam personalizar anúncios, explorar vulnerabilidades e aumentar vendas.
O interesse comercial sobe num momento em que as perturbações neurológicas atingem grande parte da população. Tecnologias de monitorização como mini-eletroencefalogramas integrados em auscultadores, pulseiras inteligentes ou dispositivos de sono colectam sinais cerebrais de forma não invasiva. Os conjuntos de dados resultantes treinam algoritmos para terapias de depressão, Parkinson ou paraplegia, mas podem igualmente alimentar plataformas de marketing, serviço ao cliente e desenvolvimento de produto.
Chips invasivos ampliam risco de violações
Projectos clínicos procuram restaurar funções motoras e sensoriais através de implantes cerebrais. Contudo, iniciativas orientadas para melhoria de desempenho sem indicação médica também ganham visibilidade. A Neuralink, de Elon Musk, planeia implantar milhares de chips com o objectivo declarado de potenciar capacidades humanas. Ienca alerta que um erro grave — como a morte de um voluntário ou o vazamento massivo de dados — “poderá minar a confiança na neurotecnologia e na comunidade científica”.
Ao contrário dos sensores externos, os dispositivos invasivos acedem a camadas mais profundas de actividade neural. Um registo detalhado de pensamentos, intenções ou recordações amplia o potencial de manipulação. Especialistas receiam que esta informação seja vendida ou utilizada para influenciar decisões financeiras, políticas ou de saúde, infringindo o direito à intimidade mental.
Frente regulatória começa a formar-se
Diferentes fóruns internacionais trabalham para evitar que o avanço técnico ultrapasse as salvaguardas jurídicas. Um conjunto de directrizes propõe incluir dados neurais na Convenção 108 do Conselho da Europa, documento que serve de referência para a protecção de dados pessoais. A UNESCO reviu recentemente recomendações sobre ética da neurotecnologia, agora em apreciação pelos seus Estados-membros.
Alguns territórios actuaram de forma autónoma. O Colorado e a Califórnia, nos Estados Unidos, aprovaram leis que equiparam informações cerebrais a DNA ou biometria, exigindo consentimento explícito e limitando a partilha com terceiros. Para Ienca, será igualmente necessário actualizar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecendo pensamentos e processos mentais como esfera protegida.
Indústria e ciência entre benefícios e cautelas
O sector biomédico destaca resultados promissores. Estimulação cerebral profunda já atenua sintomas de doença de Parkinson, enquanto interfaces cérebro-computador permitem a pessoas com paralisia controlar braços robóticos ou escrever através de pensamento. Ao mesmo tempo, algoritmos alimentados por electroencefalogramas auxiliam no diagnóstico precoce de epilepsia e demência.
O dilema surge quando a mesma tecnologia abandona o consultório para entrar no mercado de consumo. Fones capazes de medir ondas cerebrais podem optimizar sessões de meditação ou ajustar listas de reprodução consoante o humor, mas também recolher estados emocionais em tempo real. Plataformas de e-commerce teriam, assim, acesso directo à intenção de compra do utilizador, antes mesmo de este clicar num produto.
Discursos sobre inovação exigem transparência
A comunidade científica defende regras que favoreçam a investigação sem comprometer direitos individuais. Reguladores procuram equilíbrio entre incentivo à inovação e prevenção de monopólios de dados. O foco recai em princípios como consentimento informado, minimização de recolha e proibição de usos discriminatórios. Sem salvaguardas, alertam os peritos, a disseminação de auriculares, braceletes e implantes poderá tornar a vigilância cerebral tão comum quanto a recolha de dados de navegação web.
A discussão sobre neurotecnologia atravessa, assim, medicina, indústria, direito e ética. O potencial terapêutico para milhões de pacientes é inegável, mas a capacidade de aceder ao âmago dos pensamentos humanos coloca a privacidade mental num patamar até agora inexistente. A corrida por novas leis mostra que a sociedade tenta acompanhar um avanço técnico que, desta vez, toca directamente na fronteira entre o público e o íntimo.

Imagem: New Africa via olhardigital.com.br