Monstro de Florença: o enigma criminal que a nova série da Netflix resgata após meio século

Uma produção recente da Netflix volta os holofotes para um dos inquéritos mais longos, controvertidos e ainda insolúveis da história criminal italiana. A minissérie O Monstro de Florença, dividida em quatro episódios, revisita uma sequência de assassinatos ocorridos entre 1968 e 1985 na região da Toscana. Durante esse período, pelo menos dezesseis pessoas — sempre casais em busca de privacidade em áreas isoladas — foram mortas com uma combinação de disparos de pistola calibre .22 e mutilações com faca. Apesar de dezenas de suspeitos e múltiplos julgamentos, o homicida — ou o grupo responsável — jamais foi identificado de forma definitiva.
- Como surgiu o nome “Monstro de Florença”
- O primeiro duplo homicídio e a condenação de Stefano Mele
- A “trilha sarda” e o desdobramento das investigações nos anos 1980
- Pietro Pacciani no centro dos holofotes em 1994
- “Snack Buddies”: a hipótese de conluio
- Teorias sobre seitas, sociedades secretas e novos réus absolvidos
- Hipóteses internacionais e a menção ao Zodiac Killer
- Reaberturas de inquérito e pedidos por tecnologia forense moderna
- A minissérie da Netflix e a repercussão contemporânea
Como surgiu o nome “Monstro de Florença”
O rótulo que batizou tanto o caso quanto a minissérie nasceu nos anos 1980, quando órgãos de imprensa perceberam a repetição de modus operandi em crimes registrados desde o fim da década de 1960. A constatação de que sempre se tratava de casais atacados em estradas pouco frequentadas, aliados à utilização recorrente de uma pistola específica e de facas, levou jornais a definir o agressor como “Monstro de Florença”. A associação com a capital toscana fez o medo se espalhar por toda a região, causando impacto direto no cotidiano local e estimulando cobertura midiática intensa.
O primeiro duplo homicídio e a condenação de Stefano Mele
A cronologia investigativa tem início em 1968, quando Barbara Locci e seu amante, Antonio Lo Bianco, foram encontrados mortos. O principal suspeito era Stefano Mele, marido de Locci. Julgado dois anos depois, ele foi condenado pelo duplo homicídio. À época, os investigadores consideravam o crime um ato motivado por ciúmes ou vingança. Porém, a narrativa oficial seria questionada mais tarde, quando balística e outros indícios apontaram que a mesma arma empregada em 1968 também fora usada em episódios subsequentes, cometidos enquanto Mele permanecia atrás das grades.
A “trilha sarda” e o desdobramento das investigações nos anos 1980
A coincidência envolvendo o armamento levou a polícia a formular a chamada “trilha sarda”. O termo fazia referência à Sardenha, ilha de origem de familiares e antigos amantes de Barbara Locci, que passaram a ser investigados. Entre os detidos nessa fase constavam Francesco Vinci e outros parentes do círculo de Locci. Mesmo com essas prisões, os assassinatos continuaram, fato que enfraqueceu a linha de acusação. Sem evidências conclusivas, as autoridades libertaram os suspeitos e buscaram novas hipóteses, alimentando um clima de incerteza e descrédito em relação às forças de segurança.
Pietro Pacciani no centro dos holofotes em 1994
Após anos de becos sem saída, o foco recaiu sobre Pietro Pacciani em 1994. Lavrador toscano, ele já possuía histórico criminal por estupro e homicídio. Os promotores o responsabilizaram por sete dos oito últimos ataques atribuídos ao Monstro de Florença, resultado em quatorze sentenças de prisão perpétua. O julgamento, transmitido pela televisão, prendeu a atenção do país. Pacciani, entretanto, sustentava inocência e, em 1996, foi absolvido por insuficiência de provas. Um novo processo foi agendado, mas o réu morreu em 1998, antes de encarar o tribunal novamente. A morte interrompeu a tentativa de esclarecer definitivamente seu papel na série de homicídios.
“Snack Buddies”: a hipótese de conluio
Com o falecimento de Pacciani, investigadores passaram a considerar que ele poderia ter agido em conjunto com conhecidos que frequentavam os mesmos bares de interior. O grupo foi apelidado de “Snack Buddies” porque, segundo os próprios integrantes, os encontros serviam apenas para consumir petiscos. Dois nomes ganharam destaque: Mario Vanni e Giancarlo Lotti. Em 1998, Lotti apresentou uma confissão que o ligava aos crimes e também incriminava Vanni. O depoimento, recheado de contradições, não impediu que Lotti recebesse pena de 30 anos de prisão — posteriormente reduzida para 26 — e que Vanni fosse condenado à prisão perpétua. A dupla morreu na década de 2000, sem que novos elementos confirmassem ou contestassem a tese de uma colaboração organizada.
Teorias sobre seitas, sociedades secretas e novos réus absolvidos
Não satisfeita com a explicação baseada apenas nos chamados Snack Buddies, a polícia formulou outro cenário: o de que uma seita de caráter satânico ou uma sociedade secreta teria contratado Pacciani e seus supostos cúmplices para executar os assassinatos. Nesse contexto, o farmacêutico Francesco Calamandrei acabou levado a julgamento em 2008. Mesmo assim, sem provas físicas ou testemunhais consistentes, o júri o absolveu. Paralelamente, o médico Francesco Narducci, encontrado morto em 1985, foi alvo de especulações sobre eventual envolvimento, mas nada de concreto ligou seu falecimento ao caso.
Hipóteses internacionais e a menção ao Zodiac Killer
Ao longo dos anos, surgiram conjecturas que extrapolaram fronteiras italianas. Uma das mais comentadas sugeria que o Monstro de Florença fosse o mesmo criminoso conhecido nos Estados Unidos como Zodiac Killer, responsável por atentados na Califórnia no fim da década de 1960. Em 2017, o jornalista Francesco Amicone apresentou a identidade de Joseph Bevilacqua, ex-soldado norte-americano que viveu na Itália, como possível elo entre os dois casos. A hipótese gerou nova apuração, encerrada em 2021 por falta de evidências que sustentassem a ligação entre Bevilacqua e os homicídios na Toscana.
Reaberturas de inquérito e pedidos por tecnologia forense moderna
O inquérito sobre o Monstro de Florença foi reaberto em diferentes momentos, sobretudo na década de 2000. Em 2022, familiares das vítimas solicitaram que vestígios coletados à época dos crimes fossem reexaminados com métodos de DNA atualizados, na esperança de amarrar pontas soltas deixadas por técnicas forenses então limitadas. Apesar do empenho e da pressão social, o resultado das análises não levou a uma conclusão definitiva, mantendo o enigma aberto.
A minissérie da Netflix e a repercussão contemporânea
A chegada da minissérie ao catálogo do streaming, filmada nos arredores de Florença, reforça o interesse do público por detalhes que marcaram a investigação. Ao longo de quatro episódios, a produção dramatiza não apenas as cenas de crime e o trabalho policial, mas também as falhas processuais, as acusações sucessivas e as consequências sociais de quase duas décadas de medo. Com o alcance global da Netflix, o tema volta a circular em redes sociais e veículos de comunicação, reacendendo debates sobre a eficácia das instituições e a possibilidade, ainda remota, de que avanços científicos permitam a identificação do responsável.
Mais de cinquenta anos após o primeiro homicídio, o caso continua sem autor devidamente comprovado, somando prisões anuladas, confissões controversas e teorias que variam de conflitos familiares a seitas clandestinas. A cada nova reconstituição, como a oferecida pela série, renova-se a expectativa de que pistas esquecidas possam, um dia, solucionar o mistério que consolidou a figura do Monstro de Florença no imaginário criminal internacional.
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