Luz impede telescópios de verem o Big Bang — entenda o motivo
A observação astronómica baseia-se, na maioria das vezes, na luz que chega à Terra. Quanto mais longe olhamos, mais recuamos no tempo, porque a radiação demora a percorrer as enormes distâncias cósmicas. Porém, existe um limite intransponível para qualquer telescópio óptico ou de infravermelho: o Universo nos seus primeiros 380 mil anos permanece oculto. Esse período antecede a libertação da radiação cósmica de fundo, a mais antiga “fotografia” que podemos obter do cosmos. A barreira resulta da forma como a luz interagia com a matéria logo após o Big Bang.
Por que a luz não atravessa o “véu” primordial?
Nos instantes iniciais, o Universo era extremamente denso e quente, composto por partículas carregadas que impediam a propagação livre da radiação. Sempre que um electrão tentava ligar-se a um protão para formar um átomo, os fotões de alta energia quebravam essa ligação. O resultado foi um plasma opaco, no qual a luz era constantemente absorvida e reemitida em direcções aleatórias, sem avançar em linha recta.
A situação alterou-se apenas quando a expansão cósmica fez cair a temperatura até cerca de 3 000 kelvin. Nesse momento, electrões e protões conseguiram unir-se de forma estável, criando átomos neutros de hidrogénio. Esses átomos já não dispersavam a radiação da mesma maneira, permitindo que os fotões “escapassem” e viajassem livremente. Esse acontecimento, conhecido como recombinação, ocorreu cerca de 380 mil anos depois do Big Bang e deu origem à radiação cósmica de fundo (CMB, na sigla inglesa).
Todos os telescópios que utilizam qualquer banda do espectro electromagnético observam, no máximo, essa CMB. Antes dela, o Universo mantém-se encoberto, já que não restou luz detectável proveniente desse intervalo temporal.
Limite observável e implicações para a cosmologia
A impossibilidade de ver além da CMB não resulta de falta de tecnologia, mas de limites físicos. A própria natureza do plasma primordial impede a formação de imagens anteriores. Assim, mesmo os observatórios mais avançados, como o Telescópio Espacial James Webb, só podem recolher dados até à “superfície de última dispersão” — a altura em que a luz ficou livre.
Apesar desse obstáculo, a CMB fornece informações cruciais sobre a densidade, composição e evolução do Universo. Variações minúsculas na sua temperatura revelam sementes de futuras galáxias e permitem estimar parâmetros cosmológicos, incluindo a taxa de expansão e a proporção de matéria escura.
Além da luz: pistas de neutrinos e ondas gravitacionais
Embora a radiação electromagnética esteja bloqueada, outras mensageiras cósmicas podem atravessar o período opaco. Duas candidatas destacam-se: neutrinos e ondas gravitacionais.
Neutrinos são partículas subatómicas com massa quase nula e interacção muito fraca com a matéria. Estima-se que cada centímetro cúbico do espaço contenha centenas de neutrinos originários do Big Bang. Detectá-los em detalhe permitiria “ver” ainda mais longe no passado, mas o desafio tecnológico é enorme, pois esses neutrinos primordiais têm energias baixíssimas.
Ondas gravitacionais, por sua vez, são distorções no próprio espaço-tempo, geradas por eventos extremos. Como interagem ainda menos com a matéria do que os neutrinos, podem atravessar o plasma primordial sem impedimentos. Equipas internacionais, incluindo as que trabalham com redes de pulsares (Pulsar Timing Array), procuram sinais dessas ondas de origem remota. Caso sejam identificadas, poderão oferecer pistas directas sobre os primeiros instantes do Universo.
Perspectivas futuras
A próxima década deverá trazer detectores mais sensíveis, capazes de refinar a medição da CMB e de perseguir os elusivos neutrinos relictos. Além disso, projectos dedicados à detecção de ondas gravitacionais de baixa frequência pretendem expandir o alcance temporal das observações cosmológicas.
Até lá, a radiação cósmica de fundo continua a representar a fronteira observável do Big Bang através da luz. Os esforços concentram-se em métodos complementares que contornem a opacidade inicial do Universo, na esperança de revelar novos capítulos da história cósmica antes registados apenas em teoria.

Imagem: Flavia Correia via ChatGPT via olhardigital.com.br