Estrutura monumental de 5.300 anos em Kani Shaie revela papel estratégico da Mesopotâmia oriental

Uma construção com cerca de 5.300 anos, escavada no sítio arqueológico de Kani Shaie, no território que hoje corresponde ao Iraque, foi identificada por uma equipa internacional liderada pelo Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Universidade de Coimbra. O achado, atribuído ao período Uruk (aproximadamente 3300–3100 a.C.), sugere que comunidades localizadas a leste do rio Tigre participaram de forma ativa na configuração das primeiras redes urbanas e políticas da Mesopotâmia.
- Quem realizou a descoberta
- Onde a estrutura foi localizada
- Quando ocorreu a escavação decisiva
- O que foi descoberto
- Como a equipe interpreta o achado
- Por que o período Uruk é decisivo
- Implicações sociopolíticas
- Desenvolvimento de redes culturais
- Evidências de ocupação contínua
- Metodologia aplicada na campanha de 2025
- Consequências para a historiografia mesopotâmica
- Perspectivas das próximas fases
- Importância para o Crescente Fértil
Quem realizou a descoberta
A investigação é coordenada pelos arqueólogos André Tomé, Maria da Conceição Lopes e Steve Renette, responsáveis por um consórcio que reúne a Universidade de Coimbra, a Universidade de Cambridge e a Direção de Antiguidades e Patrimônio de Slemani. Desde 2013, o Projeto Arqueológico Kani Shaie conduz campanhas anuais na região, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e da Universidade de Cambridge.
Onde a estrutura foi localizada
Kani Shaie situa-se a leste do rio Tigre, numa zona montanhosa que, durante muito tempo, foi tida como periférica em relação aos grandes centros urbanos do Crescente Fértil. A área é considerada pelos investigadores como o sítio arqueológico mais relevante dessa margem para analisar a continuidade de ocupação humana desde a Idade do Bronze Inicial.
Quando ocorreu a escavação decisiva
A estrutura monumental foi identificada na campanha de 2025. Embora o projeto exista há mais de uma década, o reconhecimento do edifício como potencial espaço cerimonial ou de culto do período Uruk tornou-se possível somente após o avanço das escavações naquele ano.
O que foi descoberto
Os trabalhos trouxeram à luz um edifício de dimensões e técnicas construtivas compatíveis com a arquitetura monumental conhecida em Uruk, cidade frequentemente descrita como a primeira metrópole da história humana. Entre os vestígios que reforçam a monumentalidade do conjunto estão:
• Cones de parede: elementos decorativos característicos da arquitetura de Uruk, aplicados em fachadas para criar padrões visuais e, possivelmente, transmitir mensagens simbólicas.
• Selo cilíndrico: instrumento associado à autenticação de documentos e mercadorias, indício de processos administrativos avançados.
• Fragmento de pingente de ouro: evidência de acesso a metais preciosos, apontando para manifestação de estatuto social dentro da comunidade local.
Como a equipe interpreta o achado
Segundo os coordenadores, a hipótese predominante é que o edifício tenha funcionado como espaço de culto ou centro cerimonial. A presença dos cones de parede apoia essa interpretação, já que tais artefatos são usuais em construções de significado ritual no período Uruk. A eventual confirmação da natureza monumental poderá alterar o modo como a arqueologia entende a relação entre Uruk e os territórios vizinhos, indicando que assentamentos como Kani Shaie não eram meramente dependentes, mas sim participantes fundamentais de redes culturais e políticas.
Por que o período Uruk é decisivo
O intervalo cronológico entre 3300 e 3100 a.C. marca transformações sem precedentes na Mesopotâmia: emergência das primeiras cidades, desenvolvimento de sistemas de escrita embrionários e formação de estruturas sociais cada vez mais estratificadas. A descoberta em Kani Shaie demonstra que essas inovações não ficaram restritas ao sul mesopotâmico; ao contrário, estenderam-se às regiões montanhosas orientais por meio de intercâmbios constantes.
Implicações sociopolíticas
A presença de um selo cilíndrico sugere que sistemas administrativos sofisticados operavam na comunidade. Esse objeto, usado para selar argila fresca, podia garantir autenticidade de documentos ou cargas comerciais, indicando práticas burocráticas alinhadas a padrões observados em centros maiores como Uruk. Já o pingente de ouro denota acesso a metais preciosos e insinua a existência de hierarquias de prestígio, contrariando a classificação anterior de Kani Shaie como assentamento marginal.
Desenvolvimento de redes culturais
Os arqueólogos sustentam que sítios fora do núcleo urbano meridional integravam redes que compartilhavam técnicas arquitetônicas, artefatos e, sobretudo, ideias. A circulação de cones decorativos, selos e objetos de luxo comprova trocas culturais e políticas dinâmicas entre Uruk e comunidades orientais. Assim, a descoberta reforça a visão de uma Mesopotâmia interligada, na qual centros regionais participavam ativamente da formação de um sistema urbano embrionário.
Evidências de ocupação contínua
Antes mesmo da identificação do edifício de 5.300 anos, as escavações em Kani Shaie tinham revelado camadas que abrangem diferentes épocas. Vestígios do período helenístico-parta (247 a.C.–224 d.C.) e ocupações neoassírias (c. 911–609 a.C.) ilustram a importância estratégica do local através dos séculos. Essa longa sequência de assentamento reforça a utilidade do sítio para se compreender o processo de urbanização no Crescente Fértil.
Metodologia aplicada na campanha de 2025
A equipe multinacional utilizou técnicas de escavação estratigráfica para registrar cada camada sem perturbar contextos arqueológicos sensíveis. O financiamento institucional permitiu a integração de especialistas em cerâmica, fauna, botânica e geoarqueologia, ampliando a capacidade de interpretação dos achados. A colaboração entre universidades e autoridades locais assegura a conservação de artefatos e a formação de investigadores regionais.
Consequências para a historiografia mesopotâmica
Caso estudos posteriores confirmem a função cerimonial do edifício, os modelos tradicionais que posicionam Uruk como centro unilateral de inovação precisarão ser revistos. Kani Shaie exibiria, então, autonomia cultural e administrativa, influenciando — e não apenas recebendo — práticas sociopolíticas. Esse cenário realça o papel de atores regionais na construção das primeiras cidades e nas origens da administração complexa.
Perspectivas das próximas fases
As escavações em Kani Shaie continuam, focadas em:
• Documentar por completo a planta do edifício;
• Analisar microrresíduos nos cones de parede;
• Estudar o repertório iconográfico do selo cilíndrico;
• Realizar testes metalúrgicos no pingente de ouro.
Essas etapas visam clarificar as funções do complexo e elucidar as rotas de circulação de matérias-primas, oferecendo dados adicionais sobre a integração econômica da Mesopotâmia oriental no período Uruk.
Importância para o Crescente Fértil
O Crescente Fértil é amplamente reconhecido como o berço das primeiras sociedades complexas. A inclusão de Kani Shaie nesse panorama acrescenta uma dimensão geográfica muitas vezes negligenciada, mostrando que processos de urbanização e administração ocorreram em múltiplos polos simultaneamente. A ampliação dessa cartografia histórica fornece subsídios essenciais para reavaliar a difusão de tecnologias, escrita e organização política na Antiguidade.
Em síntese, o edifício de 5.300 anos descoberto em Kani Shaie, aliado aos artefatos associados, oferece novas chaves para compreender a emergência das cidades e das estruturas de poder na Mesopotâmia, reforçando a relevância dos territórios orientais na gestação das primeiras redes urbanas do mundo.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.

Conteúdo Relacionado