Amazônia registra seca recorde e mais de 7 mil focos de fogo em município paraense, apesar da queda no desmatamento

Mesmo após quatro anos consecutivos de redução das derrubadas, a Amazônia brasileira continua enfrentando incêndios de grandes proporções e disputas fundiárias que colocam em risco a floresta e suas comunidades. Em 2024, uma estiagem sem precedentes, combinada ao emprego tradicional do fogo na pecuária e à fiscalização limitada, levou a um cenário em que áreas de mata queimadas superaram, pela primeira vez, a extensão de pastagens atingidas.
- Queda no desmatamento não impede avanço das chamas
- Estiagem recorde e dependência do fogo na pecuária
- São Félix do Xingu: epicentro de mais de 7 mil incêndios
- Fatores estruturais que sustentam a crise
- Desigualdade agrária e multas ambientais pendentes
- Dificuldades na identificação e punição de responsáveis
- Sinais de melhora em 2025, mas desafios persistem
- Expectativas para a COP30 e caminhos para a recuperação
Queda no desmatamento não impede avanço das chamas
Os dados mais recentes confirmam a desaceleração do desmatamento pelo quarto ano seguido. No entanto, esse resultado positivo não se traduziu em segurança ambiental. Quase 18 milhões de hectares foram consumidos pelo fogo na Amazônia brasileira ao longo de 2024, volume que expôs a fragilidade do bioma diante de um período de seca extrema relacionado às mudanças climáticas. O contraste entre menos árvores derrubadas e mais área queimada indica que a supressão de novas frentes de desmate, por si só, não basta para conter as queimadas quando a vegetação permanece ressecada e vulnerável.
Estiagem recorde e dependência do fogo na pecuária
O fenômeno climático de 2024 agravou a temperatura e reduziu a umidade do ar, transformando práticas agrícolas tidas como baratas em ameaças descontroladas. Em regiões de forte vocação pecuária, como São Félix do Xingu, no sul do Pará, o fogo ainda é visto como um método eficiente para limpeza de pastos. Produtores alegam que mão de obra especializada e defensivos agrícolas encarecem alternativas mecânicas ou químicas, enquanto o uso do fogo dispensa equipamentos sofisticados. Com a seca prolongada, contudo, chamas que deveriam se limitar a áreas de capim avançaram sobre fragmentos florestais, agravando emissões de carbono e perdas de biodiversidade.
Esse comportamento reflete um ciclo econômico e cultural consolidado há décadas. Sem assistência técnica regular, pecuaristas mantêm a estratégia de atear fogo ao solo antes do início das chuvas, acreditando que a cinza fertiliza o pasto renovado. O período de estiagem recorde comprometeu esse cálculo, pois vegetação, solo e troncos ressecaram de forma atípica, facilitando a propagação de centelhas por quilômetros.
São Félix do Xingu: epicentro de mais de 7 mil incêndios
Conhecida como “país do boi” pela quantidade de gado concentrada em seu território, São Félix do Xingu liderou o ranking nacional de focos de fogo em 2024, ultrapassando sete mil registros. O município abriga cerca de 2,5 milhões de cabeças de gado, e parte significativa das fazendas pertence a grandes grupos agropecuários sediados em outras cidades. Nessa configuração, propriedades extensas operam com baixa ocupação humana, ampliando o tempo de resposta a focos de incêndio e dificultando o controle rápido das chamas.
A carência de brigadas especializadas e de infraestrutura de combate agrava a crise local. Autoridades municipais relatam que, na ausência de equipes federais ou estaduais, moradores tentam conter o fogo por conta própria, muitas vezes sem equipamentos adequados. Esse improviso eleva o risco de acidentes e de perda de controle sobre as labaredas, que se espalham pela vegetação seca em questão de horas.
Fatores estruturais que sustentam a crise
O avanço das queimadas não pode ser explicado por uma única causa. Especialistas enumeram cinco elementos centrais, presentes de forma conjunta no arco de expansão da fronteira agropecuária:
Dependência histórica do fogo: o instrumento é tradicionalmente empregado para limpar pastagens e renovar capins, perpetuando-se como opção de baixo custo.
Fiscalização insuficiente: a presença do Estado em áreas isoladas é limitada, o que reduz a capacidade de monitorar queimadas, realizar vistorias e aplicar sanções de forma efetiva.
Conflitos fundiários e concentração de terras: a posse fragmentada, somada à ausência de títulos regulares, cria tensão permanente entre pequenos agricultores e grandes propriedades, dificultando políticas de manejo integrado.
Incentivos econômicos à pecuária: o modelo de criação extensiva de gado, com retorno financeiro consolidado, estimula a abertura de novas áreas e a manutenção de práticas de baixo investimento.
Custo elevado de técnicas sustentáveis: métodos que dispensam fogo demandam equipamentos, insumos e capacitação, despesas que muitos produtores, sobretudo os de menor porte, não conseguem arcar.
Desigualdade agrária e multas ambientais pendentes
O contraste entre grandes empreendimentos rurais e agricultores familiares é evidente no município paraense. Fazendas de alto valor de mercado concentram extensões significativas e acumulam multas ambientais não quitadas desde 2013. Ao mesmo tempo, pequenos produtores afirmam conviver com punições mais rigorosas e falta de assistência para adotar práticas sustentáveis. Muitos desses agricultores não possuem documentação fundiária definitiva, o que os coloca em situação de vulnerabilidade e alimenta a narrativa de que seriam invasores.
Entidades locais apontam que grandes propriedades, por contarem com capital e estruturas administrativas em centros urbanos, podem postergar pagamentos de penalidades ou recorrer a instâncias judiciais, enquanto comunidades rurais enfrentam cobrança imediata. Essa disparidade reforça sensações de injustiça e alimenta conflitos, inclusive físicos, pelo acesso à terra e pelos recursos naturais.
Dificuldades na identificação e punição de responsáveis
A responsabilização por incêndios florestais requer provas técnicas capazes de vincular a origem do fogo a um agente específico. Órgãos ambientais dependem de perícias, imagens de satélite de alta resolução e sistemas de inteligência artificial para rastrear o ponto exato de ignição. Mesmo com esses recursos, a vastidão do território amazônico, a pulverização de propriedades e a velocidade com que o fogo se espalha tornam a investigação complexa e demorada.
Segundo a direção do órgão federal responsável pelo licenciamento e pela fiscalização, o esforço de monitoramento precisa ser contínuo, pois a abertura de pastos ilegais ou a queima não autorizada costuma ocorrer em áreas remotas, longe de bases operacionais. A carência de pessoal especializado e de equipamentos em campo amplia a lacuna entre o momento do crime ambiental e a aplicação de multas ou embargos.
Sinais de melhora em 2025, mas desafios persistem
Os primeiros levantamentos referentes a 2025 indicam redução significativa na quantidade de incêndios, alcançando o menor patamar desde 1998. Analistas correlacionam a melhora a duas variáveis principais: intensificação de operações de fiscalização durante a atual gestão federal e neutralização dos efeitos combinados de El Niño e La Niña, que haviam agravado a seca no ano anterior. Apesar da tendência de queda, especialistas alertam que o risco de retrocesso permanece alto se faltarem políticas de longo prazo para manejo florestal e incentivo a práticas produtivas de baixo impacto.
Expectativas para a COP30 e caminhos para a recuperação
No horizonte de médio prazo, o estado do Pará sediará a COP30 em 2025, evento que colocará os holofotes internacionais sobre a região. Atualmente, o estado lidera as emissões de dióxido de carbono associadas ao desmatamento no país, fato que reforça a urgência de apresentar resultados tangíveis na contenção de queimadas e na regularização fundiária. Pesquisadores ressaltam que a recuperação da Amazônia requer políticas públicas consistentes, financiamento para técnicas de manejo que dispensem o fogo e participação ativa das comunidades locais, responsáveis pela vigilância cotidiana do território.
A combinação de estiagem extrema, uso tradicional do fogo e conflitos agrários torna a gestão ambiental na Amazônia um desafio multifacetado. Se, por um lado, a queda recente nos índices de desmatamento e de incêndios em 2025 sinaliza que ações de fiscalização podem ser eficazes, por outro, a continuidade dessa tendência dependerá de investimentos permanentes, cooperação federativa e equidade no campo. Enquanto essas condições não se consolidarem, a floresta permanecerá exposta a novas temporadas de queimadas e a disputas pelo controle da terra.
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