Vômito fossilizado no Ceará revela Bakiribu waridza, primeiro pterossauro filtrador dos trópicos

Um bloco de rocha guardado por décadas em um museu do Rio Grande do Norte acaba de mudar o panorama da paleontologia brasileira. No interior da amostra, cientistas identificaram restos de uma nova espécie de pterossauro, batizada de Bakiribu waridza, que viveu há aproximadamente 110 milhões de anos. O registro não surgiu a partir de esqueletos articulados nem de pegadas impressas em sedimentos, mas de um elemento extremamente incomum: uma massa de regurgitação fossilizada, tecnicamente chamada de regurgitalite. Esse fóssil de vômito não só ampliou o catálogo de répteis voadores, como também forneceu um retrato direto da cadeia alimentar no antigo ecossistema da Bacia do Araripe, no Nordeste do Brasil.
O material foi descrito por pesquisadores de três universidades federais brasileiras e publicado em periódico científico internacional. A análise indicou que o Bakiribu waridza representa o primeiro pterossauro filtrador descoberto em regiões tropicais e o primeiro membro do grupo arqueopterodactiloide já relatado na Formação Romualdo, uma das unidades mais estudadas do Grupo Santana, no Ceará. A singularidade do achado torna o bloco de rocha um autêntico instantâneo da vida cretácea, preservando num único evento a presa, o predador e indícios de interação entre eles.
Origem e localização do fóssil
A peça que desencadeou a descoberta estava armazenada no acervo do Museu Câmara Cascudo, em Natal (RN). Catalogada originalmente como “peixe indeterminado”, ela permaneceu sem exame detalhado até receber atenção renovada de especialistas em vertebrados fósseis. Quando reavaliado, o fragmento revelou algo inesperado: entre escamas e ossos de peixes, destacavam-se porções de mandíbulas alongadas e dentes finíssimos pertencentes a um pterossauro até então desconhecido.
Geologicamente, o exemplar provém da Formação Romualdo, depósito sedimentar datado do Cretáceo Inferior que aflora na Chapada do Araripe, região onde fósseis de peixes, répteis e plantas costumam apresentar notável estado de preservação. Ao longo de mais de meio século de escavações, essa unidade rendeu inúmeros gêneros de pterossauros, mas nenhum com o modo de alimentação identificado agora.
Análise da regurgitalite
O bloco contém restos fragmentados de um único pterossauro e de quatro peixes, todos dispostos na mesma direção e alinhados como se tivessem sido engolidos pela cabeça. Essa orientação é típica de predadores piscívoros modernos, que engolem as presas para facilitar a passagem pelo esôfago. A inexistência de marcas de corrosão provocadas por ácidos digestivos nos ossos indica que a matéria orgânica foi expelida pouco tempo depois da ingestão. Por essas razões, os cientistas classificaram o conjunto como regurgitalite, evidência fóssil raríssima de um ato de vômito.
A interpretação mais plausível aponta que um grande carnívoro, possivelmente um espinossaurídeo – grupo de dinossauros já bem documentado no Araripe – devorou primeiro o Bakiribu waridza e, em seguida, os peixes. A combinação de elementos ósseos duros, especialmente a elevada quantidade de dentes, pode ter causado desconforto mecânico no estômago do predador, levando-o a regurgitar parte da refeição. O episódio terminou soterrado por sedimentos finos que, ao longo de milhões de anos, transformaram-se em rocha calcária, congelando a cena de predação para a posteridade.
Características anatômicas de Bakiribu waridza
O novo pterossauro pertence à família Ctenochasmatidae, conhecida por representantes que empregavam filtração aquática para se alimentar. Entre os traços diagnósticos mais notáveis estão as mandíbulas estreitas e extremamente alongadas, portando entre 440 e 560 dentes. A densidade atinge 17,6 dentes por centímetro, uma das maiores já registradas em pterossauros. Cada coroa dentária apresenta formato subquadrangular, e a implantação é do tipo acrodonte, ou seja, os dentes se fixam diretamente à borda óssea, sem alvéolos individuais.
O nome Bakiribu waridza homenageia o povo indígena Kariri: “bakiribú” significa pente, aludindo à fileira densa de dentes, e “waridzá” quer dizer boca. A escolha reflete a morfologia singular do animal e reforça a conexão entre o patrimônio paleontológico local e as culturas tradicionais da região.
Modo de alimentação por filtração
Com a arcada bucal funcionando como um verdadeiro peneirador, o Bakiribu waridza retirava plâncton e micropeixes da água ao deslocar a mandíbula aberta em ambientes aquáticos rasos ou lagunas. O método se assemelha ao observado no pterossauro argentino Pterodaustro guinazui, parente mais próximo apontado pela análise filogenética. Contudo, o número absoluto e a distribuição dos dentes no Bakiribu contribuem para entender uma fase intermediária da evolução do mecanismo de filtragem dentro do clado Ctenochasmatinae.
Posicionamento evolutivo
Os pesquisadores situaram a nova espécie como irmã de Pterodaustro em uma árvore evolutiva que inclui formas mais basais, como Ctenochasma, e outras mais derivadas. Essa posição sinaliza uma transição gradual no aumento da densidade dentária e no refinamento da estratégia de alimentação aquática ao longo de dezenas de milhões de anos. A ocorrência do Bakiribu no antigo supercontinente Gondwana acrescenta dados sobre padrões de dispersão de pterossauros entre hemisférios, sugerindo que adaptações para filtração evoluíram em contextos ambientais diversos.
Contexto paleoecológico do Araripe
Há 110 milhões de anos, a Bacia do Araripe abrigava lagunas salobras, deltas fluviais e áreas costeiras protegidas, apoiadas por clima tropical. Peixes abundantes, invertebrados e vários grupos de répteis constituíam uma teia alimentar complexa. O Bakiribu waridza, ao filtrar organismos microscópicos, ocupava nicho semelhante ao de flamingos atuais, convertendo biomassa planctônica em recurso para predadores de maior porte.
Entre esses predadores, dinossauros espinossaurídeos desempenhavam papel central. Evidências fósseis já registradas indicam que eles se alimentavam tanto de peixes quanto de pterossauros. A presença simultânea de ambos os tipos de presa na regurgitalite fortalece a hipótese de que esses terópodes dominavam áreas aquáticas e interagiam com répteis voadores no topo da cadeia.
Significado científico do vômito fossilizado
Fósseis de regurgitação são escassos, porque o material expelido tende a se desagregar rapidamente na superfície. Quando preservados, eles fornecem dados diretos sobre dietas antigas, algo difícil de inferir apenas a partir de ossos isolados. Nesse caso, a regurgitalite oferece múltiplas camadas de informação:
• Taxonômica: permitiu identificar uma nova espécie de pterossauro que teria passado despercebida em outros contextos.
• Ecológica: documenta simultaneamente presas de diferentes tamanhos, revelando hábitos alimentares do predador.
• Comportamental: registra o ato de regurgitar, indicando limites mecânicos no consumo de refeições compostas por peixes inteiros e um vertebrado voador.
Além disso, o fato de o Bakiribu waridza provavelmente ter vivido em águas calmas e ter sido transportado ou ingerido fora da área onde o vômito foi depositado amplia o entendimento de processos tafonômicos – isto é, dos caminhos que restos orgânicos percorrem até virarem fósseis.
Relevância para futuras pesquisas
O estudo abre novas frentes de investigação na Formação Romualdo. Por ser o primeiro arqueopterodactiloide identificado no local, o Bakiribu sugere que ainda podem existir outros representantes desse grupo nos depósitos da região. Além disso, sua dieta filtradora amplia o espectro de nichos ocupados por pterossauros tropicais, o que desafia modelos que antes restringiam tais comportamentos a latitudes temperadas.
Também reforça a necessidade de reexaminar acervos existentes em museus brasileiros. A redescoberta de um exemplar já coletado mostra que novas tecnologias de imagem, aliadas a perguntas atualizadas, podem revelar tesouros escondidos em gavetas catalogadas há décadas.
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